segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Opção subordinada a interesses?

Como explicar a campanha contra a Ota e a reviravolta em curso?
A localização de um novo grande aeroporto dificilmente poderá reunir unanimidade de opiniões. Mas tendo sido aceite a Ota por todos os Governos desde Julho de 1999, três do PS e dois do PSD, será tudo menos natural que o país esteja a ser submetido, desde há dois anos, a uma avassaladora campanha de manipulação da opinião pública destinada a forçar o Governo a mudar a localização do novo aeroporto para a Península de Setúbal, no Poceirão, nas Faias ou, mais recentemente, em Alcochete. Uma campanha tão persistente e tão cheia de distorsões não é certamente obra do acaso ou, em alternativa, pura manifestação do amor de bem servir o país.
No meio dessa movimentação, ou precedendo-a, há sem dúvida militâncias e tomadas de posição determinadas por inegável recta intenção, independentemente da (in)validade dos argumentos aduzidos. Resta saber se uma campanha tão eficaz de manipulação da opinião pública, de modo a, na realidade, subordinar os interesses estratégicos do país às conveniências próximas de alguns interesses, seria alguma vez possível sem o concurso de inocentes úteis, chamados quase que em exclusivo aos espaços nobres do debate público e da comunicação social. Com o objectivo de gravar indelevelmente no público a impressão de que a Ota é um amontoado de disparates técnicos, económicos e financeiros que apenas subsiste por teimosia do Governo, enquanto que a localização na margem Sul se imporia “obviamente”. Isto é, sem necessidade de demonstração objectiva e rigorosa, tão flagrante seria a sua vantagem nos diversos aspectos a considerar. É de fácil compreensão que a localização do novo aeroporto seja preocupação central de poderosos interesses económicos. Nada mais natural. Também faz parte do normal jogo democrático que esses interesses se manifestem publicamente procurando demonstrar que o país ficará melhor servido com a adopção do que, por mera coincidência, mais lhes convém.
Nada a objectar, desde que haja transparência e igualdade de oportunidade no exercício do contraditório. O que é contrário ao jogo democrático é que esses mesmos interesses económicos procurem transformar-se nos verdadeiros decisores da localização. Como?
Efectivando uma campanha sem precedentes de manipulação da opinião pública e de pressão sobre os órgãos de soberania competentes para legitimar a sua decisão, sua para além dos formalismos de aparente deferência perante o legítimo poder político, ao abrigo de um jogo de sombras que os mantém ocultos.
Noutros países, por exemplo, no Reino Unido ou nas democracias escandinavas, tão flagrante falta de transparência não é sequer imaginável. Mas a ser tentada, a comunicação social jamais se mostraria tão acrítica ou cega que não a zurzisse impiedosamente ao menor indício, corolário natural da sua independência e sentido de responsabilidade cívica e ética. É a diferença entre democracias longamente amadurecidas, que vêem na estrita observância do princípio da transparência a melhor garantia de qualidade da sua vida pública, e democracias recentes, como a nossa, que não só toleram como premeiam a promiscuidade opaca da política e dos interesses económicos, sendo poucos os que verdadeiramente se incomodam com isso. Sem surpresa, no caso vertente sucederam-se declarações de conformismo ou encómio, bem expressivas. Ao contrário, as denúncias foram raras, esparsas e sempre moderadas.
A avaliar pelo êxito indubitável da campanha contra a Ota, apesar da manifesta falsidade – aliás, fácil de comprovar – de muitos dos argumentos invocados, vai ser difícil conseguir que o interesse público venha a sobrepor-se à ânsia de rápida acumulação de impressionantes mais valias privadas à custa de enviesadas decisões públicas.

João Cravinho
Centro de Estudos Sociais
Universidade de Coimbra

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